A Exceção e a Regra
Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o quotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.
(Bertold Brecht)
Canção do Escrivinhador de Peças
Bertold Brecht
Assim o viram de uma janela, a mão curiosa afastando a cortina: e ele
não passava disso. Evitando as poças d’água. Além de tudo era livre:
não pedia provas. Andava olhando os edifícios sobre a chuva, de novo
impessoal e onisciente, cego na cidade cega; mas um bicho conhece a sua
floresta; e mesmo que se perca — perder-se também é caminho. (Clarice Lispector. A Cidade Sitiada, p. 186)
Sobre uma poesia sem pureza
“Assim seja a poesia que procuramos,
gasta como um ácido pelos deveres da mão,
penetrada pelo suor e o fumo,
rescendente a urina e a açucena,
salpicada pelas diversas profissões
que se exercem dentro e fora da lei.
Uma poesia impura como um fato,
como um corpo,
com manchas de nutrição,
e atitudes vergonhosas,
como rugas, observações, sonhos, vigílias, profecias,
declarações de amor e de ódios,
bestas, abanões, idílios,
crenças políticas, dúvidas,
afirmações, imposições.
A sagrada lei do madrigal
e os decretos do tato, olfato, gosto, vista, ouvido,
o desejo de justiça, o desejo sexual,
o ruído do oceano,
sem excluir deliberadamente nada,
(sem aceitar deliberadamente nada)
a entrada na profundidade das coisas
num ato de arrebatado amor,
e o produto poesia manchado de pombas digitais,
com marcas de dentes e gelo,
roído talvez levemente pelo suor e o uso.
Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso,
essa suavidade duríssima da madeira manejada,
do orgulhoso ferro.
A flor, o trigo, a água
têm também essa consistência especial,
esse recurso de um magnífico tato.
PABLO NERUDA